Arrumar o quarto é uma coisa curiosa. Às vezes nos deparamos com estranhos e sinceros relatos sobre o primeiro emprego...
"Hoje me deram esse envelope em branco aqui no escritório e eu fiquei com saudade dos Correios. Resolvi escrever para você. Mas fiquei imaginando o que eu poderia escrever de interessante, afinal a minha vida não está e nem é um tesão cheio de reviravoltas e acontecimentos. Atualmente eu estou sentada em uma mesa de vidro onde eu sempre analiso meus tênis sujos, atendo a telefonemas de quando em quando e desenho a vida habitual pra tentar fazer esse tempo daqui de dentro menos insuportável. E eu não estou falando sobre o tempo dentro de mim, e sim dentro dessa sala claustrofóbica, onde as pessoas passam, jogam algumas responsabilidades pessoais em cima de mim ("desmarca meu dentista", "descobre o preço da caçamba", "vai me comprar cigarros e coca-cola", "pergunta pra minha mãe se ela vai querer macarrão de janta") e eu cumpro, porque é pra isso que me pagam, embora eu tenha o título de recepcionista. Mas não houve cláusula contratual e nem um papelzinho que me diz o que eu faço exatamente pra eu assinar na frente do "x". Eu só sentei na mesa e descobri o que é trabalhar. Não que isso seja, porque eu me sinto meio pilantra arrancando 500 contos mais benefícios pra fazer coisas tão bestas, mas bem, eles que querem gastar esse dinheiro nessa função, é um problema deles.
O fato é que eu me sinto frustrada em fazer essas coisas no meu dia a dia, embora eu saiba perfeitamente que não faria coisa muito mais produtiva do que eu faço aqui por conta da minha falta de força de vontade. A verdade é que, se eu pudesse mesmo, eu passaria a tarde comendo doces na frente do computador, sairia vez ou outra pra ir ao banheiro e talvez veria um filme, e à noite eu encontraria o meu amigo mais livre em termos de responsabilidades e compromissos. Não dormiria em casa, me drogaria com alguma coisa relaxante e faria sexo pra cacete. Não é uma fantasia nobre, verdade, é talvez uma vida rasa, vazia e parasita sob algumas perspectivas, mas a vida só tem mesmo o sentido que impomos a ela, então não faria tanta diferença se eu tivesse renda e pessoas fizessem as outras coisas por mim. Mas esse é apenas o meu lado sinceramente ocioso e burro, então não leve tão a sério, eu não sou tão nojenta assim. :)
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Virada Cultural, 2 de Maio de 2009, 22h27."Em meio a uma escadaria lotada de pessoas das mais diversas, uma garota está parada e já desistiu de checar o celular a procura da companhia, agora só espera. As músicas, pessoas e cores distraem e tudo parece sorrir quando se olha. Ela tira do bolso um maço de cigarros e acende um, fazendo poses entre fumante mafioso e cowboy, quase sem perceber. É uma garota estranha.
Ao lado dela está um homem alto, branco, com traços leves e masculinos, cabelos curtos, limpos e penteados debaixo de uma boina militar preta. Tem sobrancelhas grossas e claras, nariz reto e longo, maxilar forte, maçãs do rosto saltadas e brilhantes olhos verdes. Um rosto daquele tipo que não se vê há séculos. Usa um coturno e uma jaqueta que esconde no bolso interno seus cigarros de filtro vermelho. Ele pega um em determinado momento e encarecidamente pede o isqueiro vermelho da moça emprestado. Ela sorri e cede. Ele acende o cigarro com habilidade desnecessária e fuma como um vigilante da Gestapo entediado fumaria. A cena é um momento clássico capturado em uma fotografia velha, só que com cores, movimento e em frente ao Theatro Municipal.
Inicia-se uma conversa amena. Ela pergunta indiscretamente que tipo de segurança ele está fazendo ou porque se veste daquele jeito. Ele conta da palestra integralista em que pretende estar em quarenta minutos, fala sobre conceitos de Deus, Pátria e Família e critica as pessoas que estão pelo evento fumando maconha e bebendo. A menina segura, se recordando brevemente, a paranga que está largada no bolso das calças. Concorda com a cabeça enquanto dá outro longo trago no cigarro e olha o movimento da rua distraidamente.
Então, avista pessoas conhecidas ao longe, logo depois de toques insistentes no celular. Ele lhe dá um folheto com poemas de Plínio Salgado e Câmara Cascudo e a elogia, falando de como as mulheres brasileiras são realmente mais bonitas que outras mulheres. Ela sorri de soslaio, termina o cigarro, desce um degrau e bate continência para o rapaz, correndo até a calçada e, depois de cumprimentar os amigos, bebe no gargalo o vinho mais vagabundo e imoral que existe."
Oi, após longo período de preguiça, auto-sabotagem, falhas humanamente aceitáveis e procrastinação consciente, voltei para tentar deixar isso aqui mais visitável. Ou torço por isso com todas as minhas forças.